terça-feira, 30 de junho de 2015

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica do Prof Vitor Guita

As suspeitas de corrupção que caiem sobre as elites da indústria futebolística mundial fizeram tilintar algumas campainhas da nossa memória e levaram-nos a recordar outros tempos em que o mundo do futebol se afigurava mais genuíno, salutar, bem distante da actual loucura dos mercados.
A propósito, veio-me à lembrança aquela célebre equipa do Sport Lisboa e Benfica, apenas composta por jogadores nacionais e que conquistou, pela primeira vez, a Taça dos Clubes Campeões Europeus. Muitos dos estimados leitores lembrar-se-ão, por certo, de nomes como Costa Pereira, Mário João, Ângelo, Neto, Germano, Cruz, José Augusto, Santana, Águas, Coluna, Cavém.
Com toda a propriedade, era possível afirmar que se tratou, até àquela data, da maior vitória do futebol português.
A recente conquista da Champions League pela equipa do Barcelona veio reforçar ainda mais a vontade que sentimos de recuar até 1961, já que foi precisamente contra a equipa do Barça que, nesse ano já distante, o Benfica conquistou o primeiro título de campeão europeu.
Se o espelho retrovisor da nossa memória não nos atraiçoa, a emocionante final disputou-se em Berna, no Estádio Wankdorf , perante cerca de 35 mil espectadores, com os espanhóis em larga maioria .
Como é que isto está tão presente? – Interroga-se o leitor. Há episódios que permanecem indelevelmente gravados na nossa lembrança. Em 1961, tínhamos 12 anos de idade. As televisões, em Montemor eram escassas. Existia um número reduzido de aparelhos em certas casas particulares, nalgumas lojas de eletrodomésticos e também nos maiores cafés e tabernas da vila.
Para a rapaziada mais miúda, tratava-se de uma verdadeira odisseia conseguir ver um programa do princípio a fim, especialmente as séries mais apreciadas: Robin dos Bosques, As Aventuras de Zorro, Fúria, Bonanza, etc… Íamos saltitando de café em café, de taberna em taberna, à espera que a condescendência dos respectivos proprietários ou empregados nos deixasse poisar por ali.
Sorrateiramente, a miudagem lá se ia escondendo debaixo das mesas ou noutro recanto qualquer, sempre com um olho no televisor e outro na rua, ainda assim não aparecesse algum polícia.
A final de Berna, nunca mais vamos esquecer. Vimo-la debaixo de uma mesa, na conhecidíssima Casa Frango, situada na Rua do Poço do Passo. Fernando Eurico Medronheira, dono do estabelecimento, era um dos homens que manifestava maior tolerância face à presença clandestina dos mais novos. Pelo menos, tinha um modo mais simpático de nos enxotar, se compararmos com outros bem mais sisudos ou com um certo ar adoutorado.
Naquela quarta-feira de fins de Maio, a taberna estava atravancada de gente, tudo com os olhos postos no ecrã. A floresta cerrada de corpos impedia quem estava ao balcão de conseguir detectar os pequenos intrusos que se alinhavam debaixo das mesas.
O ambiente estava ao rubro. O público simpatizante do futebol, em particular a falange benfiquista, vibrava perante o êxito da equipa das águias que, ao intervalo, já vencia por 2-1.
Por cima do tampo da mesa que nos camuflava, ouvíamos os adultos pronunciarem, além dos nomes dos jogadores portugueses, outros bem mais estranhos como Kubala, Kocsis, Czibor, que pareciam ser alguns dos maiores perigos da equipa adversária.
Comentava-se também o estado físico de Mário Coluna, que teve que ser retirado do campo, meio atordoado, após um violento choque com um jogador do Barça. Para grande alívio dos benfiquistas, o motor da equipa da Luz voltaria a entrar em campo, já recomposto, com a força e a capacidade de liderança que o caracterizavam.
Mal soou o apito final, foi a loucura. O placard assinalava 3-2 a favor dos encarnados. O Benfica era, pela primeira vez, Campeão Europeu. Houve aplausos, saltos, gritaria, uma verdadeira explosão de júbilo.
Entretanto, na capital Suíça, seguiram-se as habituais cerimónias da entrega da Taça e das medalhas aos jogadores. Foi com lágrimas que os portugueses ali presentes ouviram o Hino Nacional. Também por cá houve quem lacrimejasse de alegria. Em Montemor, e por esse país fora, do Minho ao Algarve, houve manifestações de regozijo, só comparáveis às conquistas dos Campeonatos do Mundo e da Europa pela Selecção Nacional de Hóquei em Patins.
Como já tivemos oportunidade de referir, vivemos todas estas emoções na Casa Frango, que, durante anos, foi uma referência gastronómica em Montemor e não só.
Acrescente-que Fernando Medronheira era um fervoroso adepto do “Glorioso”, correndo atrás da equipa para todo o lado, juntamente com outros benfiquistas de gema.
Quanto ao negócio, anteriormente pertença de Joaquim do Cantinho, passou para as mãos do amigo Medronheira e de um irmão, que se fizeram acompanhar de sua mãe e excelente cozinheira, conhecida por Maria Pintainha. Daí a designação Casa Frango. A título de curiosidade, a família viveu no Monte das Alpistas, ali para os lados do Picatojo. A taberna e casa de comidas eram muito frequentadas, sobretudo numa época em que toda aquela zona da vila fervilhava de gente. Alem dos fregueses locais, vinham ali viajantes e clientela de toda a parte. À quinta-feira, por exemplo, deslocavam-se propositadamente, à Rua do Poço do Passo, uma equipa de bancários de Évora para se deliciar com o cozido à portuguesa. Havia que preferisse a gostosíssima mão de vaca com grão ou não menos saborosa dobrada com feijão, entre outros pratos da nossa cozinha regional.
Mudam-se os tempos…mudam-se as vontades! Hoje quem ali vai encontra um restaurante chinês, e as escolhas passam por um arroz chao-chao, uns crepes, um chop-suey ou utra comida oriental.
Estivemos há dias a conversar com Maria Primitiva Baptista, viúva de Fernando Medronheira. Durante vários anos, também ela participou na orientação da famosa casa de comidas e foi ela que nos ajudou a reavivar a memória daquele velho espaço, além de nos fornecer outros dados preciosos. Falamos, por exemplo, das cozinheiras que ali trabalharam e de empregados como o José Francisco Medronheira Pontinha (José Picatojo) ou do Luís Manuel.
Quem entrava, tinha a taberna, á direita, que fazia ligação ao restaurante por uma porta baixa e estreita. Lá no fundo, existia a cozinha e também “a casa dos touros”, com as paredes cobertas por grandes e coloridos cartazes de corridas. Era ali que boa parte da aficion de Montemor se reunia.
Um dos momentos mais felizes vividos na Casa Frango aconteceu quando a Sorte Grande bateu à porta.
 A taberna apinhou-se de gente para ver os representantes da Casa da Sorte entregarem o valioso prémio. Apesar disso, o trabalho não parou e o negócio continuou a prosperar. Só muitos anos mais tarde, já na década de 70 é que Fernando Medronheira trespassou o negócio.
Muito do que atrás ficou dito foi-nos reforçado por António Ezequiel Ferreira, vulgarmente conhecido por o Tói dos táxis. Também ele trabalhou na velha taberna e casa de comidas, ainda no tempo de Joaquim do Cantinho. A conversa pareceu-nos demasiado interessante para ser condensada nas poucas linhas que nos restam. Divulgá-la-emos numa próxima oportunidade.
Diremos apenas, para terminar, que foi marcante aquele ano de 1961, em que o Benfica se sagrou, pela primeira vez, Campeão Europeu. As conversas que os adultos faziam à nossa volta referiam-se à tomada de assalto do paquete Santa Maria pelo capitão Henrique Galvão. Falava-se também do agravar da situação dos territórios ultramarinos, especialmente em Angola. Salazar afirmava que só restava a solução militar e que era preciso andar rapidamente e em força. Entretanto, lá por fora, Kennedy, Adenaur e De Gaulle discutiam a questão de Berlim, admitindo que esta voltasse a ser um dia a capital de uma Alemanha reunificada. Os soviéticos colocavam em órbita um satélite com várias toneladas, e , de Estocolmo, chegava a boa notícia de um coração a funcionar com baterias. Assim ia Portuga e o mundo.
Até um dia destes.

Vitor Guita
In Montemorense, edição de Junho 2015. Transcrição autorizada pelo Autor para o Al Tejo




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