O forrobodó carnavalesco já lá vai. É de crer que estejam
igualmente de partida a chuva, o frio, o vento agreste e, já agora, as danosas gripalhadas.
Março está aí à porta e, com ele, o despertar da Primavera.
Porém, tal como aquela “triste e leda madrugada” celebrada por Camões, também o primeiro mês primaveril pode
ser alegre e triste ao mesmo tempo.
Objectivamente alegre, porque surge habitualmente envolto
numa sinfonia de novos sons e cores; subjectivamente triste, porque pode ser ensombrado por alguma triste
lembrança.
No próximo mês de Março, vai fazer oito anos que morreu o
escritor montemorense e nosso velhíssimo amigo João
Carlos Alfacinha da Silva, conhecido no meio literário por
Alface.
Na altura, jornais, televisões e estações de rádio não
deixaram passar em branco o desaparecimento deste extraordinário escritor e homem da comunicação. O jornalista Adelino Gomes,
por exemplo, escrevia para o Público a seguinte notícia: “O escritor João Alfacinha da Silva, que assinava Alface,
morreu ontem, aos 58 anos, depois de um AVC sofrido numa Comunidade de Leitores dedicada ao seu último romance Cá vai Lisboa.
O tempo passa depressa. No dia 1 de Março de 2007, o João
encontrava-se em Lisboa, na Culturgest, para participar numa sessão publica de
leitura de um dos seus mais conhecidos e polémicos romances. A referida sessão
era dinamizada pela jornalista Maria João Seixas. A dada altura, o escritor
sentiu-se indisposto e sucumbiu de forma implacável.
A este propósito, ouviram-se e leram-se os mais
encomiásticos comentários: “Morreu no seu posto, em plena homenagem à sua obra e em plena festa dos seus leitores” ou “ O
escritor que fez a sua saída do mundo dos pensamentos durante o bater de palmas do seu público” ou ainda “O Alface faz-nos muita
falta!”
Para nós falar do João Carlos implica voltar ais anos 50,
meados dos de 60, aos tempos do liceu, ou melhor, ao período em que estudámos no Externato Mestre de Avis.
Fomos companheiros de carteira e frequentemente cúmplices na feitura de
algumas tarefas escolares: um tirava
significados e traduzia; o outro dedicava-se ás retroversões. A divisão de tarefas
estendia-se, por vezes, a outros(as) colegas da vizinhança. “O
João era muito engraçado” – comentava um dia destes uma velha amiga.
Em matéria de
leitura, o Alfacinha era um praticante acima da média. Raro era o dia em que,
depois da saída do colégio não houvesse uma
paragem na papelaria Mira para ir à procura dos últimos livros de aventura.
Não se julgue,
porem, que o João era do tipo “rato de
biblioteca”, ou, como diria o Bocage,
“um memorião que engole dicionários. Como a
maioria dos rapazes da sua idade, não dispensava uma boa jogatana de bola no
Rossio. O Alfacinha era muito corajoso e um
atleta de eleição. Arriscava meter o pé ou a cabeça onde os outros não ousavam
fazê-lo. Mais tarde, seria assim a sua
escrita: irreverente, ousada, desafiadora.
No ginásio do
colégio, o filho mais novo do Dr. Vicente Silva era dos raros alunos que
conseguia fazer o cristo nas argolas, revelando-se igualmente arrojado nos
saltos e na trave.
No Verão a sua
costela aventureira, meio vadia, levava-o até á Pintada e aos outros pegos do
Almansor, autenticas piscinas naturais que serviam de escola de natação a muita
gente.
O conhecimento que
tinha do rio levou o Alface a escrever algumas das suas deliciosas páginas, de
que partilhamos consigo, estimado leitor, alguns excertos:
Não chamávamos o rio a este Almansor que hoje nos ocupa. Umas vezes era r´bera, outras r´rebero e este hermafrodisismo fluvial teria possivelmente a ver com questões de caudal, mais amplo se feminino (a r´bera), mais esquelético, clandestino, sumido, quase renitente, na fase r´bero. Ou seja, um rio feminino no Inverno e masculino no Verão, o que não deixa de ser um excelente programa de festas para quem aspire à totalidade do Ser”.
Não chamávamos o rio a este Almansor que hoje nos ocupa. Umas vezes era r´bera, outras r´rebero e este hermafrodisismo fluvial teria possivelmente a ver com questões de caudal, mais amplo se feminino (a r´bera), mais esquelético, clandestino, sumido, quase renitente, na fase r´bero. Ou seja, um rio feminino no Inverno e masculino no Verão, o que não deixa de ser um excelente programa de festas para quem aspire à totalidade do Ser”.
No seu livro, Cuidado com os rapazes, Alface refere-se
assim a um dos pegos da sua eleição: “Nos
dias quentes de verão, quando o alcatrão derretia as ruas, o avô cumpria a
sesta e eu escapava-me para o rio, enchendo a blusa de figos verdes, amoras e
marmelos. O rei do rio era um guarda-florestal muito gordo que se orgulhava de
ler o jornal enquanto boiava, e proibia mergulhos nos arredores. Nós
apanhávamos rãs nos charcos para lhe enfiarmos palhas no cu e soprar. Quando se
tira a palha elas zunem desinchando pelo ar e uma vez conseguimos acertar na
barriga meio submersa do guarda que nesse dia nem teve tempo de ler os
cabeçalhos e jurou vingança.”
Terminado o 5º ano,
a ida do Alfacinha para Lisboa – primeiro para o Liceu de Oeiras e depois para
a Universidade – acabaria por provocar algum afastamento físico de Montemor.
Tal como aconteceu a muitos outros homens de letras, a Universidade não foi
suficientemente aliciante para convencê-lo a concluir os estudos, primeiro em
Direito e depois em Psicologia.
A distância física
não impediu, no entanto, que fôssemos mantendo contacto em áreas de interesse
comum, como era o caso do teatro. Foi através do Alfacinha que tivemos acesso
pela primeira vez a peças de Bertol Brecht e a textos do grande mestre
Stanislavski.
Apesar das mudanças
e de alguns problemas de saúde que entretanto o afectaram, o João Carlos
manteve sempre o seu espírito irónico, bem-humorado, por vezes sarcástico.
Num país de gente
“séria”, que parece caminhar para um território de sisudas “formigas”, o ar
descontraído, meio desalinhado do Alface, podia fazer pressupor, no espírito de
alguns, tratar-se de uma “cigarra” avessa ao trabalho.
O jornalista Nuno
Costa Santos, na edição de Dezembro da revista Ler, referia-se ao escritor
montemorense do seguinte modo:
“Há quem diga que, cumprindo o estereótipo alentejano, se deixava
amolecer nas redes da preguiça. Se foi, é preciso dizer que se tratava de um
preguiçoso muito trabalhador.”
Aproveitando a
boleia do excelente trabalho jornalístico realizado por Nuno C. Santos,
deixamos aqui enumeradas algumas das múltiplas facetas profissionais do nosso
amigo João Carlos, que vão desde a prosa literária, á publicidade, às notícias
de rádio, aos guiões de telenovela, etc, etc, etc… Ora faça as contas, estimado
leitor: jornal República; escrita para televisão, em programas como “Ensaio” e
“Impacto”; participação na cooperativa de cinema, a Cinequipa; outros projectos
televisivos, nomeadamente um telejornal alternativo para o Canal 2, que incluía
nomes como Fernando Assis Pacheco e Eduardo Prado Coelho. Mas, há mais.
Mantendo colaboração pontual com jornais e televisão, o João Alfacinha da Silva
apostou, a determinada altura, na actividade radiofónica, onde escreveu
noticiários e outros programas na antiga Emissora Nacional e na Rádio
Comercial. Integrou equipas de redação que incluíam figuras como Joaquim
Furtado e Adelino Gomes. Foi ele que escreveu os textos para o programa “
Marcas de um Século”, lidos aos microfones da Rádio Comercial FM por João David
Nunes.
O João Alfacinha
tinha, porem, uma característica muito singular. Era pouco dado a fazer fretes,
a aguentar cangas, a suportar espartilhos. A partir de 1992, talvez devido a
fadiga ou por sentir necessidade de experimentar outros horizontes, abandonou o
emprego garantido e partiu à aventura, como free-lancer, num país nem sempre
fácil no que toca às letras e às artes. O João lançou mãos de mil e uma
actividades. Trabalhou em publicidade, adaptou peças de teatro, escreveu
novelas, fez crítica literária para o jornal Expresso, colaborou com a Radigest,
o jornal Tal & Qual e outras coisas que, certamente, ficam por dizer.
Nos últimos anos,
isolava-se temporariamente em Montemor, na belíssima casa da Rua do Lavre, para
se dedicar à escrita. Para desentorpecer vinha até à varanda de granito fumar a
sua cigarrada ou comtemplar o pôr-do-sol. Na sala grande tinha montado um
estratagema, com maços de tabaco no chão a servir de baliza, uma bola e um taco
de golfe, para o estimular a fazer alguns movimentos.
Entre as longas
horas de trabalho, havia paragens para ir às compras, cozinhar uma ou outra
refeição com os amigos. Além disso nunca deixava de assistir às transmissões
televisivas dos jogos do seu Benfica, a mor das vezes no Bacalhau ou na
Pedrista, de preferência com umas imperiais e umas perninhas de rã a acompanhar.
Do ponto de vista
literário, Alface é co-autor com Manuel da Silva Ramos de Os Lusíadas, As Noites Brancas do Papa Negro e Beijinhos. A solo,
publicou: Cuidado com os Rapazes, O Fim
das Bichas, A Mais Nova Profissão do Mundo e Cá Vai Lisboa.
É ainda autor de
cinco histórias “juvenis” agrupadas sob o título de Uma Família Sem Mestre. Entre outros trabalhos que lhe conhecemos
destacamos O Burro que Anda no Céu, história
dedicada aos seus queridos netos.
A escrita do Alface
era (ainda é) uma escrita inteligente, mordaz, bem-humorada. O invulgar domínio
que tinha da língua portuguesa fazia com que o seu estilo oscilasse entre o
purismo mais exigente, de uma enorme erudição, e os níveis de língua mais
popular, recorrendo frequentemente ao palavrão. Acima de tudo, o seu modo de
escrever deixa transparecer uma enorme liberdade, que era condição essencial da
sua produção literária.
Terminamos com uma
expressão sua, que utilizou no livro Cá
Vai Lisboa: “Cada palavra sua festa. Festa brava”.
Até à próxima.
Vitor Guita
Publicado in “O Montemorense” edição de Fevereiro – transcrição
autorizada pelo Autor
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